Os pequenos grandes problemas do cotidiano ocupam todo o nosso tempo. Horários a cumprir, contas a pagar, compras a fazer. A rotina diária nos preenche mesmo que não percebamos, e naturalmente passamos a realizar as coisas automaticamente, sem pensar: o ato de efetuar um saque em um caixa eletrônico ou retirar mensagens no mailbox torna-se tão banal quanto beber um copo d'água. A rotina nos conforta mas ao mesmo tempo há um quê de mecanização nos gestos e atitudes que tomamos.
As relações humanas também se ressentem dessa pressa constante do dia-a-dia nas grandes metrópoles. Nossos amigos e contatos, muitas vezes, restringem-se aos grupos com os quais convivemos diariamente: o trabalho, a faculdade, a família. Quantos de nós ainda alimentam as amizades cultivadas no primário? Quantos ainda mantém contato com ex-colegas de um antigo emprego? Nas grandes cidades o tempo torna-se mais relativo ainda: filas e congestionamentos fazem com que todos tenham pressa; as multidões andam a passos apressados, sem saber o porquê. Como na canção da Paulinho da Viola, "Sinal Fechado", as nossas relações acabam se limitando a um "olá, tudo bem?", ou um "prometo que um dia desses te ligo". Contudo, este dia sempre está sendo adiado. Afinal de contas, temos muito o que fazer.
"A Auto-Estrada do Sul", primeiro conto do livro Todos os Fogos o Fogo, cuja primeira edição foi lançada em 1966, é um relato típico na obra de Julio Cortázar, que busca a redescoberta do sentido humano, perdido em mundo contraditório, caótico, perturbador.
A ação começa em um terreno bastante conhecido por qualquer paulistano, principalmente aquele que se arrisca a viajar para a praia em feriado prolongado: um congestionamento na auto-estrada do sul, que leva a Paris. Tal ocorrência faz com que um grupo bastante heterogêneo de pessoas, que jamais se conheceria em outras circunstâncias, seja obrigado a se relacionar. Elaborei um esquema destes personagens de acordo com a localização espacial de seus carros:
Turista de Washington do De Soto Casal de velhos do ID Citroen roxo Senhora do Beaulieu Fiat 600 2HP "Taunus" (líder), seu amigo e o menino com o automóvel de brinquedo Dois rapazotes do Simca Casal camponês do Ariane (almoxarifado geral) Passageiro do DKW Moça do Dauphine Engenheiro do Peugeot 404 (vagão-leito/carro-ambulância) Duas freiras do 2HP (depósito suplementar) Motorista indignado do Floride Casal do Peugeot 203 e sua filha Homem pálido e solitário do Caravelle Soldado e moça "recém-casados" do Volkswagen O conto jamais revelará qual o motivo que causou o congestionamento-monstro que durará dias a fio, mas isso não possui a menor importância na história. Cortázar, ao lançar seus personagens nessa situação, pretende discutir como as relações humanas se tornaram tão fugidias, tão frágeis no mundo desumanizado das grandes metrópoles.
Na situação fantástica do conto, o tempo, tal como o conhecemos na contexto apressado dos centros capitalistas, perde todo o seu sentido: "qualquer pessoa podia olhar no relógio, mas era como se esse tempo, amarrado ao pulso direito ou ao bip bip do rádio, medisse outra coisa fora do tempo" 1.
A situação obrigará as pessoas a se conhecerem. O personagem principal do conto, o "engenheiro do Peugeot 404", trava contato com o pequeno microcosmos à sua volta: a moça do Dauphine, os rapazes do Simca, o casal de velhos do ID Citroen roxo, as freiras do HP, o Volkswagen do soldado e sua companheira, etc. Pouco a pouco estas pessoas, ao se conscientizarem de que a situação pelo qual estão passando não será tão passageira quanto imaginavam, sentirão a "sensação contraditória de enclausuramento em plena selva de máquinas concebidas para correr"2.
Forma-se então um novo grupo social que não tardará a elaborar uma série de regras de convívio. Afinal de contas, as pessoas estão acostumadas ao convívio em uma sociedade regida por leis, e possuem a necessidade de alguém que assuma um papel de liderança no grupo: escolhem um dos homens do Taunus. O conto, aliás, deixa bem claro que essa forma de organização se repetirá ao longo de todo o congestionamento: cada pequena aglomeração de carros elegerá um chefe. Mesmo em uma situação-limite como esta, os homens repetem as formas de organização a que já estão acostumados.
A vida continua, apesar dos incômodos e das privações. Carros tornam-se lares, e os personagens convivem como se fossem vizinhos de um condomínio: "os meninos do Taunus e do 203 tinham ficado amigos, depois brigaram mas logo se reconciliaram; seus pais se visitavam, e a moça do Dauphine ia de vez em quando ver como estavam passando a velha do ID e a senhora do Baulieu" 3. O Peugeot 404 do engenheiro será improvisado como um "vagão-leito" para os mais velhos. O Ariane do casal de camponeses se transformará em um "almoxarifado geral".
Mas nem todos mostrarão possuir a mesma capacidade de adaptação às circunstâncias: o motorista do Floride abandonará seu carro. Segue-se o suicídio do homem do Caravelle, ainda que o motivo seja o fim do relacionamento com "uma tal Yvette" 4, que o deixara em Vierzon. A solução é prática: o cadáver é deixado dentro do porta-malas do carro, e designa-se um dos rapazes do Simca para conduzir o Caravelle durante os poucos e parcos avanços do congestionamento.
Os moradores da região tratam os motoristas como forasteiros indesejados no local: "em plena noite, alguém jogou uma foice que bateu no teto do DKW" 5. Sabem que aqueles são homens da cidade que pertencem a um mundo completamente diverso do deles. Cortázar não alimenta ilusões a la Blade Runner: diferentemente do final do filme, o campo jamais é representado como uma ilha idílica e receptiva à fuga dos problemas urbanos. Estranhos são tratados como estranhos. Para se abastecer, os motoristas são obrigados a recorrer a intermediários: "o Ford Mercury e um Porsche apareceram todas as noites para traficar com víveres". 6
Esta última frase é o exemplo perfeito do uso que Cortázar faz das metonímias para nomear os personagens do conto. Ninguém é conhecido pelo seu verdadeiro nome. Mesmo que inconscientemente, todos sabem que os dias de convívio na auto-estrada do sul não passam de relacionamentos passageiros; como pessoas que se encontram no elevador ou em algum emprego temporário.
É o que acontece no relacionamento entre o engenheiro do Peugeot 404 e a moça do Dauphine, que acaba por engravidar. O engenheiro chega a alimentar a ilusão de que a relação tornar-se-ia duradoura, e "a idéia de ter um filho dela acabou por parecer-lhe tão natural quanto a distribuição noturna dos mantimentos ou as viagens furtivas até a beira da auto-estrada". 7 Homens adaptam-se facilmente a novas rotinas, e até mesmo a morte no meio do congestionamento é encarada com naturalidade: "tampouco a morte da velha do ID a ninguém podia surpreender". 8
Mas quando todos parecem estar acostumados à nova realidade, eis que as coisas se modificam: "ouviram o tumulto, algo como um pesado mas incontrastável movimento migratório que acordava de um interminável torpor e experimentava suas forças". 9 Cortázar parece querer nos dizer que não existe estabilidade duradoura na vida. Por mais confortável que as coisas pareçam estar, há sempre um elemento de mágico ou de inesperado na vida. A rotina é uma armadilha. Em vários sentidos.
Os carros põem-se em marcha cada vez mais acelerada. No princípio, o Peugeot 404 e o Dauphine correm lado a lado, mas paulatinamente o desencontro entre as diversas pistas paralelas da auto-estrada faz com que os carros afastem-se mais e mais. Logo chega uma hora em que o engenheiro não reconhece nenhum automóvel ao seu lado. "O 404 havia esperado ainda que o avanço e o recuo das filas lhe permitissem chegar novamente até o Dauphine, mas cada minuto o persuadia de que era inútil, de que o grupo se dissolvera irrevogavelmente, de que já não voltariam a repetir-se os encontros de rotina, os rituais mínimos, os conselhos de guerra no automóvel de Taunus, as carícias de Dauphine na paz da madrugada" 10.
À semelhança do soneto de Baudelaire, "A Uma Passante", a frieza das multidões faz com que um possível amor se dilua frente à imensidão das grandes cidades: "[...] fugitiva beldade/De um olhar que me fez nascer segunda vez,/Não mais hei de te rever senão na eternidade?/Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!/Pois de ti já me fui, não sei que fim levaste,/Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!" 11 O engenheiro deixou seu casaco de couro no Volkswagen do soldado. Um vidro de lavanda, no 2HP das freiras. Dauphine lhe deixou um ursinho de veludo no carro. Como rastros, lembranças que carregamos em nossa memória, mas que um dia vão embora. No entanto, a moça da Dauphine traz dentro de si um fruto daqueles dias na estrada; como disse Joyce, "o passado jamais passa".
Cortázar encerra o conto escrevendo: "[...] e se corria a oitenta quilômetros por hora em direção às luzes que cresciam pouco a pouco, sem que já se soubesse bem para que tanta pressa, porque essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para a frente". 12
O conto é uma crítica a este mundo no qual as relações, à semelhança da sociedade consumista e descartável em que vivemos, tornam-se cada vez mais passageiras. É um processo mesmo de "coisificação", como se homens se transformassem em objetos como carros. Uma sociedade na qual queimar índios ou fechar vidros para pedintes na rua torna-se um ato aceitável, facilitado pelo fato de evitarmos dar personalidades, almas a estas pessoas.
Além disso, é um ataque à aceitação passiva da rotina mecanizada em que vivemos. Em outra obra, Histórias de Cronópios e Famas, há uma parte em que Cortázar escreveu "manuais de instrução" para vários atos que repetimos constante e naturalmente: chorar, matar formigas, dar corda no relógio, subir escadas. Porque necessitamos reaprender o mundo - fazemos coisas de modo tão automático, tão "maquinizado" que já se esvaziaram de todo sentido.
A respeito da rotina, escreve Cortázar: "quando abrir a porta e assomar à escada, saberei que lá embaixo começa a rua; não a norma já aceita, não as coisas já conhecidas, não o hotel em frente; a rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se em cima de mim como uma magnólia, onde os rostos vão nascer quando eu os olhar, quando avançar mais um pouco, quando me arrebentar todo com os cotovelos e as pestanas e as unhas contra a porta do tijolo de cristal, e arriscar minha vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal na esquina" 13. Como disse Garcia Lorca: "só o mistério nos faz viver".
1. CORTÁZAR, Julio. Todos os Fogos o Fogo. Tradução de Gloria Rodriguez. Civilização Brasileira, São Paulo, 5a. ed., p. 3.
2. Op. cit., p. 4.
3. Op. cit., p. 14.
4. Op. cit., p. 18.
5. Op. cit., p. 20.
6. Op. cit., p. 22.
7. Op. cit., p. 23.
8. Op. cit., p. 23.
9. Op. cit., p. 24.
10. Op. cit., p. 26.
11. BAUDELAIRE, Charles. "A Uma Passante", in Flores das "Flores do Mal". Tradução de Guilherme de Almeida. Ediouro, São Paulo.
12. Op. cit., pp. 27-28.
13. CORTÁZAR, Julio. Histórias de Cronópios e Famas. Tradução de Gloria Rodriguez. Civilização Brasileira, São Paulo, 1994, 5a. ed. pp 4-5.
domingo, 2 de maio de 2010
Os mistérios da rotina: uma análise do conto "A Auto-Estrada do Sul"
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