domingo, 26 de abril de 2009

Visões da Vida

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Modos de macho, modinhas de fêmea?
25 de abril de 2009 às 14:48

É com grande prazer que este escriba se prepara para desdizer, ou ao menos para relativizar fortemente, muito do que andou afirmando em colunas anteriores. Estou me referindo ao papel evolutivo dos sexos masculino e feminino, e em especial o de machos e fêmeas da espécie humana. Com base no que se vê no reino animal, e também em dados preliminares obtidos sobre os hábitos de homens e mulheres mundo afora, quase todo mundo supunha que as garotas eram naturalmente mais recatadas e exigentes na hora de escolher um parceiro, enquanto os rapazes tendiam mais à promiscuidade e à relativa falta de seletividade. Como todos os verbos acima estão no pretérito imperfeito, você já deve ter imaginado que esses estereótipos talvez tenham pouca base na realidade. E é exatamente isso que uma pesquisa recentemente publicada argumenta.

O trabalho de que falo está assinado pelo trio Gillian R. Brown, Kevin N. Laland (ambos da Universidade de St. Andrews, Reino Unido) e Monique Borgerhoff Mulder (da Universidade da Califórnia em Davis). Em artigo na revista “Trends in Ecology and Evolution”, eles propõem uma análise crítica dos papéis que os biólogos evolutivos normalmente atribuem aos sexos na espécie humana. A base de sua argumentação são dados sobre casamentos e produção de descendentes vindos de 18 sociedades distintas, tanto do Ocidente industrializado quanto de grupos tribais da África, da Ásia e das Américas. (Os brasileiríssimos índios xavantes estão representados na amostra.)

O trio de pesquisadores tem como objetivo declarado desafiar os princípios estabelecidos por Angus J. Bateman em 1948, num estudo seminal (trocadilho intencional) com moscas-das-frutas. Bateman percebeu que o número de filhotes produzidos por um macho da espécie tinha relação direta com a quantidade de fêmeas que ele conseguia inseminar, enquanto, para as moscas-das-frutas do sexo feminino, o efeito do acasalamento com um ou com múltiplos machos era exatamente igual para a produção de bebês-mosquinhas.

Estratégias divergentes
Bateman concluiu que, como a produção de espermatozoides é relativamente barata em termos energéticos, é do interesse evolutivo dos machos obter o máximo possível de parceiras, já que isso maximiza as chances deles de deixar um bom número de descendentes. Já as fêmeas produzem óvulos, células grandes e relativamente custosas; além disso, arcam com os custos de botar ovos e dotá-los com reservas de energia para que os filhotes nasçam saudáveis. Por isso, tenderão a ser mais parcimoniosas e a “apostar pouco”, escolhendo poucos e bons parceiros.

Ao longo das décadas, esse raciocínio foi estendido para uma série de outras espécies, incluindo muitos mamíferos (como nós). Considerando que, entre os bichos produtores de leite, a mamãe ainda tem de arcar com o custo adicional de gestar os bebês dentro de seu corpo por vários meses e de amamentá-los por um período igualmente longo ou até maior, parecia óbvio que elas seguissem a mesma estratégia das fêmeas de moscas-das-frutas. De fato, isso foi verificado em muitas outras espécies do reino animal. As exceções, como os cavalos-marinhos (entre os quais o macho é que fica “grávido”) pareciam apenas confirmar a regra.

Surgiu assim um postulado difícil de atacar em biologia evolutiva: o sexo que mais investe na reprodução (em geral, o feminino) também é o mais monogâmico, enquanto o sexo oposto, por poder se reproduzir com relativa falta de dor de cabeça, tende a ser mais promíscuo. Mais importante ainda, o postulado prediz que normalmente haverá uma competição acirrada entre machos garanhões para monopolizar o maior número possível de fêmeas recatadas. Esse seria um dos principais motores da chamada seleção sexual, que consiste no desenvolvimento de características sexuais secundárias que servem como chamariz/demonstração de qualidade genética para o sexo oposto. Estamos falando de coisas como a cauda dos pavões, as cristas dos galos ou, de forma mais modesta, os músculos, voz grossa e queixos proeminentes dos homens.

Os dados, ora, os dados
Quase todo mundo, em especial os psicólogos evolutivos, que tentam entender o comportamento humano com base em motivações biológicas profundas ligadas à evolução, apostavam que esse quadro geral vale para a nossa espécie. Mas, ao contrário do que propunha Nelson Rodrigues, nenhum cientista pode se dar ao luxo de dizer “pior para os fatos”. Afinal, o que os dados reais sobre casamentos e reprodução humana dizem sobre as “diferenças de estratégia econômica” entre os sexos?

Segundo a nova pesquisa, esses dados mostram, em primeiro lugar, que não existe um padrão comportamental único e que nem sempre o sucesso reprodutivo dos homens (definido como a quantidade de filhos que eles geram) está associado ao número de parceiras fixas que eles têm ao longo da vida (o chamado sucesso de acasalamento).

Brown, Laland e Mulder mostram que, na média das sociedades, é verdade que a situação é mais desequilibrada entre os homens, ou seja, alguns sujeitos geram muito mais filhos que outros, enquanto a quantidade de filhos por mulher tende a ser mais parelha. Mas os resultados parecem depender muito de fatores… culturais, e não biológicos.

Em sociedades em que a monogamia é a norma mais aceita, a diferença de sucesso reprodutivo entre homens e mulheres quase não existe. Já em grupos humanos nos quais a poligamia é sancionada por leis e costumes, as diferenças crescem. E o mais curioso é o seguinte: nos locais onde existe monogamia serial, ou “monogamia-Hollywood” (casa, descasa, casa, descasa, casa…), os homens mais bem-sucedidos reprodutivamente se equiparam aos dos garanhões das sociedades polígamas. Mesmo assim, entre alguns povos nos quais a poligamia é a norma, como os Aka da República Centroafricana, homens e mulheres, por motivos misteriosos, têm mais ou menos o mesmo padrão de sucesso reprodutivo.

No fim das contas, a relação entre quantidade de parceiras fixas e sucesso reprodutivo em humanos também parece ser bastante bagunçada e não-linear. Por um lado, dados oriundos dos nossos xavantes, do povo Kipsigi, do Quênia, e da moderna Suécia indicam que, quanto mais parceiras um homem tem na vida, mais filhos ele produz. Já os britânicos mais ricos tendem a ter mais filhos que os mais pobres, mas não mais mulheres. E, entre os Pimbwe, da Tanzânia, a grande quantidade de esposas acaba diminuindo o sucesso reprodutivo dos homens. Já as mulheres desse mesmo povo africano que têm três ou mais parceiros acabam, paradoxalmente, tendo mais sucesso reprodutivo dos que a que têm menos homens na sua listinha matrimonial.

Virando a mesa
É claro que esses dados precisam ser lidos com alguns grãos de sal. Para começar, eles não foram obtidos com a ajuda de testes de DNA, os quais poderiam rastrear a contribuição da infidelidade conjugal para o sucesso reprodutivo de ambos os sexos. Mesmo assim, não se pode negar que eles nos ajudam a ver com outros olhos a suposta fixidez do comportamento sexual humano, que teria sido escrito nas tábuas de pedra da evolução sem se modificar nas últimas dezenas de milhares de anos.

Aparentemente, somos mais complexos do que isso, e as adaptações culturais desenvolvidas por cada povo ao longo dos séculos parecem interagir de forma complexa com nossos instintos sexuais e reprodutivos.

Se isso parece solapar, em parte, o projeto de entender a natureza humana com base na evolução, é sempre importante ressaltar que, em ciência, estabilidade é ignorância. Ninguém deve se apegar a uma tentativa de explicação do mundo à revelia dos fatos. O bom da curiosidade científica é que seus resultados, embora sempre provisórios, nunca deixam de nos presentear com um retrato em expansão do mundo em que vivemos.

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PS1 – Antes de encerrar o texto, tiro o meu chapéu para o genial nome do livro do jornalista Xico Sá, de quem roubei descaradamente (mas com gratidão) o título desta coluna.
http://colunas.g1.com.br/visoesdavida/
PS2 - Uma amiga antenadíssima me avisa, via Twitter, que Xico Sá, por sua vez, roubou o título do teórico Gilberto Freyre. Nada se cria, tudo se copia.

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